domingo, 31 de maio de 2015

Valendo de suas experiências de vida, Hugo Pratt criou obra-prima dos quadrinhos


Mais empolgante que as aventuras de Corto Maltese talvez só tenha sido a história de vida de seu criador, Hugo Pratt. Não somente sua carreira como artista que é digna de nota, mas sua vida pessoal foi tão atribulada e aventuresca que não é de se admirar que a sua principal criação tenha se notabilizado pela precisão e exuberância de sua narrativa. Pratt esteve nos dois lados da Segunda Guerra Mundial, como prisioneiro dos nazistas e (depois de liberto) como tradutor e produtor de shows para o lado dos aliados. Em 1949, mudou para Argentina onde fundou a "Escola de Veneza" ao lado de quadrinistas célebres como Héctor Oesterheld, Mario Faustinelli, Dino Batagglia, Paolo Campani e Alberto Ongaro, ao lado dos quais criou outros personagens tão marcantes quanto o marinheiro sem nau.

As aventuras de Corto Maltese são frutos da fase mais madura de Pratt, criadas após o seu regresso à Itália em 1965. Foi com A Balada do Mar Salgado que ele deu início a tudo, apresentando o seu personagem de espírito livre, rebelde e ousado em boa parte inspirado por escritores clássicos também identificados com a temática sobre viagens, como Robert Luis Stevenson, Ernest Hemingway e Rudyard Kipling. Muito além da óbvia referência, Pratt expandiu o gênero na medida em que adicionou um componente visual inconfundível, composto ora por uma aquarela pesada, composto por blocos de nanquim, ora por um traço fino e delicado. Tudo isso, aliado a um senso incrível de fluidez narrativa e dinamicidade do traço, fez com que Pratt revolucionasse a forma como os quadrinhos são vistos: mais como arte e menos como uma manifestação cultural menor.

A Balada do Mar Salgado é também uma história incrível. Não só pela história em si, mas também pelo modo como ela é contada. O talento de Pratt proporcionou uma infinidade de cenas inesquecíveis e diálogos sem igual. O caráter dúbio de Corto deixa o roteiro completamente imprevisível para o leitor de primeira viagem e, convenhamos, há poucas coisas mais chatas do que heróis românticos. Maltese, ao revés, é o legítimo anti-herói. Não está preso às regras e convenções e age conforme lhe aprouver no momento. Não guarda ressentimentos e possui palavra. Talvez essas características pareçam contraditórias, mas Pratt as deixa perfeitamente críveis e pertinentes.

Balada se passa durante a Primeira Guerra Mundial no sul do Oceano Pacífico, lugar em que os alemães se aliaram a piratas locais para abater embarcações comerciais em busca de recursos. No centro das negociatas está Raspoutine, um dos mais odiáveis personagens dos quadrinhos (no bom sentido, claro) e antagonista direto de Maltese. Este, com o perdão do trocadilho, embarca nessa por acaso. À deriva no mar após ser expulso da embarcação daquele em que viajava, Corto é resgatado pela por Rasputin, que o envolve na sua trama contra os alemães. 

A partir daí se desenvolve esse épico marítimo, com inúmeros desdobramentos e reviravoltas. Em nenhum momento ao longo de suas mais de 160 páginas a leitura se torna monótona. Pratt demonstrou exímia habilidade na construção de seus personagens e condução dos acontecimentos, sem perder de vista o elemento visual. Desse casamento perfeito entre texto e desenho que se pode compreender o porquê dessa obra ser considerada clássica.

Corto Maltese - A Balada do Mar Salgado
Corto Maltese: La Ballade de La Mer Salée
***** 10
Casterman | 1963
Pixel | janeiro de 2006
Roteiro e Arte: Hugo Pratt

domingo, 24 de maio de 2015

Apesar da cor, O'Neil investe no contraste entre Lanterna e Arqueiro


Quando as aventuras espaciais começavam a ganhar força no mercado americano de quadrinhos, sobretudo por quadrinhos da Marvel como do Capitão Marvel e Warlock (criado em 1972 por Jim Starlin), a DC veio na contramão da tendência e fez do seu personagem espacial por excelência, Lanterna Verde, entrar de cabeça numa fase bastante pé no chão. Essa fase de seu título escrito por Denny O'Neil e desenhada por Neal Adams se tornou antológica e até hoje é reverenciada como um dos melhores momentos da editora em sua história.

Juntar Lanterna Verde, personagem que em razão de suas ligações cósmicas sempre encontrou dificuldades em se conectar com os problemas mais mundanos, e Arqueiro Verde para uma espécie de road-comic - espécie de variante para os quadrinhos dos road movies - se provou uma boa ideia. Juntos, a dupla esmeralda, acompanhada de um guardião do universo, percorre o interior dos EUA para ver mais de perto os principais problemas sociais que perturbam o país, dentre eles conflito racial, delinquência juvenil e poluição ambiental.

Como bem destacou Denny O'Neil no prefácio da edição lançada pela Panini em 2006, juntar Lanterna Verde e Arqueiro Verde não se deu em razão de ambos serem verdes, mas porque um significa quase a antítese do outro. De tão diferentes, a interação entre eles não teria como não ser interessante. Um é um guardião integrante de gloriosa tropa dos lanternas verdes e investido de um poder conferido por um anel mágico; o outro é demasiadamente humano e de tendências quase anarquistas, depende apenas de seus aguçados instintos humanos. Depois dessa improvável parceria, Hal Jordam passou a cada vez mais contestar as ordens dos guardiões da galáxia e soube que sua visão maniqueísta das coisas não funcionava no mundo atual.

Lógico que essa fase possui todos aqueles maneirismos típicos dos quadrinhos da Era de Prata e Bronze. Mas já é possível perceber uma subversão do padrão unidimensional das histórias que eram contadas na época. Essa tendência foi bastante presente durante a passagem de O'Neil e Adams pelo título do Lanterna Verde ao longo das 13 edições que durou. A revista já vinha passando por dificuldades antes da dupla assumir as história, mas essa abordagem diferente não foi suficiente para salvá-la.

Contudo, a história mais famosa dessa fase não foi publicada nesse primeiro encadernado. Em Green Lantern #85-86, a dupla esmeralda descobriu que o ex-parceiro de Arqueiro Verde, Ricardito (Speedy), tornara-se um viciado em drogas. Oliver e Hal se dispõe a derrubar os traficantes que forneceram a droga, mas eles logo descobriram que um CEO corrupto estava por trás de todo o comércio ilícito. Essa história ilustra bem o diferencial desse título em relação aos demais da época: muito mais do que lutar contra vilões fantasiados, eles combatiam a injustiça e a indiferença social. Uma luta quase perdida, mas que eles tiveram a ousadia de travar.

Grandes Clássicos DC: Lanterna Verde / Arqueiro Verde - Vol. 1
Green Lantern #76-82
**** 8,0
DC | abril de 1970 a março de 1971
Panini | março de 2006
Roteiro: Dennis O'Neil
Arte: Neal Adams
Arte-final: Dick Giordano, Frank Giacoia e Cory Adams

domingo, 17 de maio de 2015

Brubaker aproximou Capitão América dos conflitos modernos sem ignorar seu perfil clássico


O Capitão América, a exemplo do Superman, não é um dos super-heróis mais fáceis de se escrever. É um personagem que tem tudo para ser tachado de datado, mas ainda persevera na indústria e encontrou um nicho bastante adequado para explorar atualmente, sobretudo depois do sucesso dos filmes. O Capitão, se abordado do jeito errado (exacerbando na postura patriótica ou fazendo-o arauto de valores conservadores), pode levar suas histórias ao completo desastre, ainda mais para um público não-americano, que o associa, por vezes, ao que de pior existe na política externa norte-americana.

Por isso que não era trivial a missão de Ed Brubaker e Steve Epting ao assumir a revista do herói em 2005: revitalizar um título que vinha de altos e baixos nos últimos anos. Para isso, a dupla aproveitou o ensejo das comemorações dos 75 anos do personagem para contar uma história que altera radicalmente as bases sobre as quais estava a sua mitologia assentada. Já não é novidade alguma que nessa revista Bucky praticamente voltou dos mortos, se transformando no letal Soldado Invernal. O filme Capitão América 2 trata-se de uma adaptação desse arco, o que já denota que a revista foi um enorme sucesso de público e crítica.

Tirando os leitores mais puristas que se revoltaram com o ressurgimento de Bucky (que até então era tido como morto enquanto tentava impedir que o Barão Zemo lançasse se ataque a missel), foram poucos os que não gostaram dessa nova abordagem trazida por Brubaker ao título. A personalidade do Capitão só teve a ganhar com a história, ao passo que acrescentou novas camadas de dramaticidade a um personagem em si já bastante atormentado. Nessa altura, ele já não era mais somente um "herói deslocado de seu tempo", mas também um personagem pessoalmente ferido.

Ao contrário de heróis bastante populares como Homem-Aranha, Batman e Superman, o Capitão não é conhecido pelos seus laços familiares, tolhendo um potencial de histórias em que esses vínculos poderiam ser explorados. Ao trazer Bucky de volta, Brubaker trouxe talvez o vínculo pessoal mais forte que o Capitão já teve com alguém. Ver suas histórias tomarem esse rumo era tudo aquilo que a revista estava precisando naquele momento.

Por outro lado, como contraponto a essa visão positiva, creio que a história tenha pecado pela falta de objetividade, o que se tratando de uma revista mensal é uma falha perfeitamente natural. Só a leitura continuada de um encadernado pode revelar esse porém. Contudo, não é algo que prejudique a leitura como um todo. Apenas uma observação final: ao contrário da Panini, a Salvat dividiu a história em dois volumes partes, sendo a primeira do arco apresentada no encadernado Tempo Esgotado

Capitão América - O Soldado Invernal
Capitain America #1-9; e #11-14
**** 8,0
Marvel | janeiro de 2005 a abril de 2006
Salvat | outubro de 2013 e janeiro de 2014
Roteiro: Ed Brubaker
Arte: Steve Epting e Michael Lark

domingo, 10 de maio de 2015

"Saga" mantém a fluidez narrativa sem comprometer o conteúdo


É uma característica que sempre acompanhou Saga, mas que só agora, lendo o volume 4, eu reparei: a peculiar relação tempo-espaço por quadrinho. A composição de página de Fiona Staples desde o início da série é de economia de quadrinhos. Eles são geralmente compostos por painéis na horizontal (emulando o widescreen do cinema) e splashe-pages (em média de 3 por edição), ou seja, são poucos quadrinhos para contar uma história contínua que se desenrola durante um grande período de tempo. Isso significa que a sarjeta entre um quadrinho e outro tende a serem gigantes.

Para quem ainda não teve oportunidade de ler o clássico Desvendando os Quadrinhos (se você for um desses, não sabe o que está perdendo), Scott McCloud apresenta uma explanação bastante didática sobre o que seria a sarjeta nos quadrinhos: o espaço existente entre um quadrinho e outro, onde a imaginação do leitor é especialmente exigida para uni-los em torno de uma ideia, um significado. Em Saga, viagens interplanetárias são feitas no espaço de uma página, grandes acontecimentos se dão em poucos números. Ao contrário de muitas obras, principalmente séries regulares, que demoram meses para se chegar ao clímax, Saga é extremamente enxuta em sua estrutura, o que permite Fiona Staples a melhorar sua arte.

Trata-se de uma qualidade a ser creditada tanto a Brian K. Vaughan quanto a Staples, que conseguem dizer mais com menos, sem comprometer o envolvimento do leitor com a trama ou com os personagens. Personagens esses que continuam incríveis como sempre foram. Eu desconheço onde começa e até onde vai a contribuição de Vaughan e Staples no desing dos personagens, que são de uma inventividade incomum. Nem toda Tropa dos Lanternas Verdes apresenta tamanha diversidade como a encontrada no universo de Saga. Claro que a aparência deles guardam, ainda que ligeiramente, alguma relação com sua respectiva personalidade, vide Yuna, a traficante de drogas do novo trabalho de Alana.

No volume 4, finalmente a família encabeçada por Alana e Marko conhecem algum período de calmaria, bem longe dos seus habituais algozes. Porém, coincidência ou não, uma crise conjugal se instala, sobretudo em razão do vício em alucinógenos de Alana e da nova amiga de Marko, que está dando em cima dele. Além disso, trabalhando em período quase integral, Alana passa a ficar sem tempo para o marida e filha. Isso tudo mostra que não importa o quão improvável é o universo de Saga, a HQ ainda consegue se comunicar com o leitor através de dilemas e problemas bastante ordinários.

Sem dúvida, Saga continua seguindo um ótimo ritmo e apresentando uma grande história, que tem tudo para ficar marcada na história dos quadrinhos. A história me lembra um pouco de Y - O Último Homem, também de Vaughan. Enquanto nesta série, Yorick percorria o país atrás atrás da cura para a doença que dizimou todos os outros homens do mundo (numa espécie de road movie apocalíptico), Saga segue dinâmica semelhante, ao submeter Alana, Marko e cia. a uma, com o perdão da redundância, saga cósmica de tirar o fôlego. Taí também o porquê de eu levar tanta fé no crescimento da história.

Saga - Volume 4
Saga #19-24
**** 8,5
Image | dezembro de 2014
Roteiro: Brian K. Vaughan
Arte: Fiona Staples

domingo, 3 de maio de 2015

Stan Lee e Moebius abordaram a ameaça de Galactus sob ponto de vista filosófico em minissérie


Antes da republicação pela Panini do encadernado de Parábola no ano passado, poucos sabiam que Stan Lee e Moebius já trabalharam juntos com um dos personagens mais queridos da Casa das Ideias, resultando numa graphic-novel lendária, uma das melhores da história. A ideia da parceria partiu do próprio Moebius durante um encontro com Stan Lee, assim como a escolha do Surfista Prateado como personagem principal. O herói era da predileção de Moebius, em razão, sobretudo, de o Surfista ser um personagem perfeito para divagações filosóficas e não é segredo para ninguém que Stan Lee nutre uma afinidade especial por ele.

A visão diferenciada de mundo é elemento marcante da personalidade do Surfista. Por isso, de modo a explorar a genialidade de Moebius, Stan Lee criou uma aventura diferenciada, mais reflexiva e adulta, antagonizada por Galactus, um dos vilões mais tradicionais da Marvel e umbilicalmente ligado às origens do Surfista. A origem clássica do herói revela que ele era o arauto de Galactus, "O Devorador de Mundos", até este se voltar contra a Terra. Comovido com o espírito guerreiro do Quarteto Fantástico que não abandonou a luta, embora a derrota fosse patente, o herói prateado se voltou contra o seu mestre e o expulsou do planeta.

Mas os humanos pouco se sensibilizaram. O Surfista começa Parábola caído na marginalidade e amargurado com a inconstância da natureza humana, que é acentuada com o retorno arrebatador de Galactus na Terra. O caos logo se instala e as pessoas se desesperam com o iminente fim do mundo. Se aproveitando dessa fragilidade, um líder religioso coloca Galactus como seu Deus e ele como o único mensageiro.

O interessante nessa história é conferir a maneira como Stan Lee lida com o fanatismo religioso e como a sua radicalização é perniciosa para a sociedade. Em momentos de fraqueza, os homens logo procuram um redentor, alguém que possa lhes liderar e proteger do desconhecido. Vozes dissonantes da maioria tendem a ser reprimidas e tudo que possa questionar a fonte de poder, deve ser extirpado. Em Parábola, essas questões são postas no contexto da religião. Mas não é difícil fazer um paralelo com a sociedade e como em períodos de exceção em geral.

Stan Lee privilegiou abordar mais os conflitos filosóficos e morais nascidos com a chegada com Galactus do que precisamente retratar a batalha frontal entre ele e o Surfista. Moebius no posfácio presente na edição da Abril (de onde eu li a história) confirma a intenção: "Tenho certeza de que algumas pessoas prefeririam mais ação, mas eu, particularmente, acho mais interessante ver a revista em quadrinhos sob um ponto de vista filosófico". Esse é o grande diferencial da obra de Stan Lee e Moebius: sua história transcende o gênero de super-heróis, mas sem perder a conexão com o fã.

Lançado originalmente sob o selo Epic Comics em dois volumes, Parábola ganhou o Eisner de Melhor Série Limitada em 1989, repetindo o feito que Watchmen alcançou no ano anterior.

Surfista Prateado - Parábola
Silver Surfer: Parable #1-2
***** 9,0
Marvel | dezembro de 1988 e janeiro de 1989
Panini | março de 2014
Roteiro: Stan Lee
Arte: Moebius